Com um título propositadamente irreverente, a peça pretende chamar a atenção para assuntos tão particulares como a violação, a menstruação, a mutilação, o prazer, as infidelidades conjugais ou as terapias de grupo.
Para o mundo feminista não ortodoxo, mais inclinado a anteceder o substantivo por um pós, o texto de Eve Ensler (n. 1953) equivale a uma boa acção de agitação e propaganda que encontra o seu devir no palco. Ou seja: difunde algumas ideias básicas e exemplos simples por um grande número de pessoas recorrendo à boa disposição e, ao mesmo tempo, cumpre os preceitos da propaganda, permitindo ao pequeno grupo de espectadores mais sagazes encontrar nas entrelinhas aquilo a que comummente se chama a mensagem, e assim satisfazerem o espírito com algum substrato.
[J. vê bem o plano dos sapatos :-)]
Nesta versão portuguesa, discretamente encenada por Isabel Medina, Guida Maria é quem já sabe ao que vem, pois foi ela, no ano 2000, dirigida por Celso Cleto, quem protagonizou a primeira apresentação de Os Monólogos da Vagina, então no seu quarto ano de vida e popularidade após a estreia numa esconsa sala de Greenwich Village, em Nova Iorque.
É ela também a actriz mais segura e convincente em palco, agora que o partilha com Ana Brito e Cunha e São José Correia, que cumprem a preceito e com brilho os seus papéis, muito por conta da opção da encenadora, quer ao triplicar o número de intérpretes, quer ao confiar nas virtudes do original e na dedicação das actrizes, e, principalmente, ao encontrar-lhes o registo certo, aproveitando exemplarmente o tom reguila familiar a Ana Brito e Cunha e a espontânea feminilidade de São José Correia, deixando a peça ancorada no talento experimentado de Guida Maria, capaz de ser num momento – como diz a canção – uma fera na cama e, no outro, uma lady à mesa.
Excertos de "Os Monólogos da Vagina
"A INUNDAÇÃO
As minhas partes baixas? Já não as visito desde 1953. Não, não teve nada a ver com o Eisenhower. Não, não. Lá em baixo há uma cave. É muito húmida. Descer até lá não é nada agradável. Acredite em mim. Uma pessoa fica agoniada. É sufocante. Dá enjoos. Há um cheiro a humidade e bolor. Ui! É insuportável. Cola-se à roupa.
Não, não houve um acidente ali em baixo. Não houve uma explosão nem um incêndio. Não aconteceu nada desse género. Não foi nada assim tão dramático. Aliás… bem, não interessa. Não. Não interessa. Não posso falar consigo sobre isso. Porque é que uma pessoa inteligente como a menina anda por aí a falar com velhotas sobre as suas partes baixas? Quando eu era rapariga, não era assim que nos entretínhamos. O quê? Deus do céu, está bem.Houve um rapaz. Chamava-se Andy Leftkov. Era giro… bem, pelo menos eu assim pensava. Era alto, tal como eu, e eu gostava muito dele. Convidou-me para dar uma volta no seu carro…
Não lhe posso contar isto. Não posso falar sobre o que há lá em baixo. A gente simplesmente sabe que existe. É como uma cave. Por vezes ouvem-se ruídos lá em baixo. Ouvem-se os canos e certas coisas ficam presas… coisas e animais pequenos. É húmida e por vezes é preciso tapar as fendas. Porém, a porta está quase sempre fechada. Esquecemo-nos de que existe. Repare… uma cave faz parte da casa mas não a vemos nem pensamos nela. Mas existe porque em todas as casas é necessária uma cave. Caso contrário, o quarto seria na cave.
Oh, o Andy, o Andy Leftkov. Certo. O Andy era um rapaz bonito. Era um bom partido. Era o que dizíamos naquela altura. Estávamos no carro dele, um Chevrolet BelAir branco novinho em folha. Lembro-me de pensar que as minhas pernas eram demasiado compridas para o banco. Eu tenho as pernas muito compridas. Batiam no tablier. Eu olhava para os meus joelhos grandes quando ele me beijou de surpresa tal como nos filmes, na cena em que o rapaz abraça a rapariga e a arrebata. Fiquei excitada, muito excitada e, bem, houve uma torrente lá em baixo. Era incontrolável. Era como se uma corrente de paixão, um rio de vida, jorrasse de mim, das minhas cuecas, direitinha ao banco do seu Chevrolet BelAir novinho em folha. Não era urina e cheirava mal. Bem, para ser sincera, não me cheirava a absolutamente nada mas o Andy disse que cheirava a leite azedo e que eu estava a manchar o banco do carro. Eu era uma «rapariga esquisita e malcheirosa», dizia ele. Queria explicar-lhe que o beijo me tinha apanhado desprevenida e que normalmente eu não era assim. Tentei enxugar a torrente com o meu vestido. Era um vestido novo amarelo-claro e, manchado pela torrente, ficou muito feio. Sem me dirigir a palavra, o Andy levou-me a casa e, quando saí do carro e fechei a porta, também fechei a loja. Fechei-a à chave. Nunca mais se abriu. Depois, ainda saí algumas vezes com rapazes mas o receio de outra torrente deixava-me muito nervosa.
Eu costumava ter sonhos. Sonhos loucos. Oh, são disparates. Porquê? Porque eu sonhava com o Burt Reynolds. Não sei porquê. Nunca me entusiasmou muito na vida real mas nos meus sonhos… era sempre eu e o Burt. Eu e o Burt. O Burt e eu. Eu e o Burt saímos juntos. Fomos a um restaurante semelhante a tantos outros em Atlantic City. Um restaurante grande com candelabros enormes e milhares de empregados de mesa com coletes. O Burt dava-me uma orquídea para pôr ao peito. Eu prendia-a ao meu casaco. Ríamo-nos. Ríamo-nos muito, eu e o Burt. Comíamos cocktails de camarão. Camarões enormes e saborosos. Não parávamos de rir. Éramos muito felizes. Depois os nossos olhares cruzavam-se e ele puxava-me para si no meio do restaurante. Quando estava prestes a beijar-me, a sala estremecia, pombos esvoaçavam de baixo da mesa — não sei porque raio havia pombos debaixo da mesa — e surgia a torrente. Jorrava sem parar. E com ela vinham peixes e barcos pequenos e o restaurante ficava cheio de água. Burt estava ensopado até aos joelhos, com um ar terrivelmente decepcionado por eu ter feito das minhas outra vez, e olhava horrorizado para os seus amigos, o Dean Martin e outros tantos, que passavam por ele a nadar nos seus smokings e vestidos de noite.
Já não tenho estes sonhos. Desde que me tiraram praticamente tudo o que estava nas partes baixas. Retiraram-me o útero, as trompas, tudo. O médico quis armar-se em engraçadinho. Disse-me que era melhor deitar fora o que já não tinha uso. Mas descobri que afinal era um cancro. Tiraram-me tudo. De qualquer modo, quem é que precisa de tanta coisa? Não é verdade? É algo muito sobrestimado. Já fiz outras coisas. Adoro exposições de cães. E vendo antiguidades.
O que escolhia para ela? Que espécie de pergunta é essa? O que escolhia? Escolhia uma enorme tabuleta:«Fechada devido a inundação.»O que diria ela? Eu já lhe disse. Não é bem a mesma coisa. Ela não é como uma pessoa que fala. Calou-se há muito tempo. É um lugar. Um lugar onde ninguém vai. Está fechada, nos subterrâneos. Fica lá em baixo. Está satisfeita? Já falei consigo… arrancou-me as palavras. Fez uma velhota falar sobre as suas partes baixas. Está satisfeita agora?
Sabe, na verdade, é a primeira pessoa a quem contei esta história e sinto-me mais aliviada."
"A MINHA VAGINA ERA A MINHA ALDEIA
A minha vagina era um campo verde com flores rosadas e claras, onde as vacas mugiam e o sol repousava, e que um meigo namorado tocava suavemente com uma pequena palha dourada. Há algo entre as minhas pernas. Não sei o que é. Não sei onde está. Não lhe toco. Agora não. Já não. Desde então.
A minha vagina era tagarela, impaciente, tinha tanto para dizer, muitas coisas para contar, não desistia e não se calava. Ó sim, ó sim.Desde que sonho que nela existe um animal morto cosido com linha de pesca negra e grossa. E o terrível cheiro deste animal morto não desaparece. A sua garganta foi cortada, sangra e suja os meus vestidos finos de Verão.
A minha vagina cantava as canções das raparigas, as canções tilintantes dos badalos das cabras, as canções dos agrestes campos no Outono, as canções da vagina, as canções da vagina que era o meu lar.Desde que os soldados a trespassaram com uma espingarda grande e grossa. O cano de aço gelado cala o meu coração. Não sei se vão dispará-la ou empurrá-la até ao meu cérebro e girá-la. Entre eles, seis médicos monstruosos com máscaras negras enfiam garrafas dentro de mim. Vejo paus e o cabo de uma vassoura.
A minha vagina nadava nas águas do rio, nas águas límpidas que jorravam continuamente sobre as pedras queimadas do sol, sobre o clítoris duro como as pedras sobrepostas nas margens do rio.
Desde que ouvi a pele rasgar-se e guinchar, desde que fiquei com um pedaço da minha vagina na mão, uma parte do lábio que já não existe.
A minha vagina. Uma aldeia cheia de vida e húmida à beira do rio. A minha vagina era a minha aldeia.
Desde que homens que cheiravam a fezes e a carne fumada se revezaram durante sete dias e deixaram o seu esperma hediondo dentro de mim. Tornei-me um rio de veneno e pus e todas as colheitas morreram. Tal como os peixes.
A minha vagina era uma aldeia cheia de vida e húmida à beira do rio.
Eles invadiram-na. Chacinaram e incendiaram-na.
Agora já não lhe toco.
Não a visito.
Já lá não vivo.
Não sei onde fica."
Estes dois momentos foram, majestosamente narrados pela actriz Guida Maria. Há ainda que fazer referência a um outro momento igualmente brilhante - o dos orgasmos. Literalmente, delicioso ;-)
P.S.1. - Depois de ver esta peça. Só me ocorre dizer "A minha vagina sou eu!!" ;-)
Cada vez gosto mais dela... talvez porque cada vez gosto mais de mim!!
P.S.2. - J. viste como acertei no Orgasmo ;-) As coisa que eu sei. Ehehehehe ;-)
P.S.3. - Obrigada C. pelo convite e pela companhia do A. e da J.
2 comentários:
Fui ver ontem com a minha namorada.
Sala cheia, 90% eram mulheres. Elas "estavam lá", sabiam do que se falava! Mas deviam fazer apresentações só para homens... e obrigá-los a ir! Anda por aí muito "menino" que nunca parou para pensar e que tem uma visão muito redutora das "vaginas".
Ah, outra coisa: A minha namorada saíu de lá a tratar-me por "Bob"...
Fui ver ontem com o meu namorado! a companhia ideal para este espectáculo... o meu "Bob"!!
Está excelente! muitas mulheres e pouco público masculino! que pena! só por si é uma excelente formação: "Como entender as mulheres"
Uma abordagem magnifica do universo feminino.
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